Anna Teresa Rojas Molina Assumpção Gouvêa
Sol de dezembro, o calor é infernal e o meu desejo mais íntimo é por azul: azul cobalto, azul real, anil, turquesa... Uma profusão de azuis é o que espero para janeiro. Eu até já apaguei o vermelho e branco, cores tradicionais para o final de ano. Será a pressa, ou o ritmo acelerado do tempo? De qualquer maneira estamos vivenciando de forma diferenciada, diga-se de passagem, os “finais” que chegam atropelados entre arrochos de chefias, gráficos e porcentagens, além das profecias; novidades tecnológicas e cataclismos. Não nos esqueçamos da gripe.
Por tudo isso, nosso pensamento exausto se adianta em busca de descanso, o tão sonhado descanso. “Sombra e água fresca”.
Chega! E quando digo chega, refiro-me a ações que vão desde o cessar fogo, nos morros cariocas e nas trincheiras atuais das variadas guerras e conflitos, até o fim das epidemias contemporâneas e à falta de amor próprio e aos circundantes. E tudo isso porque, o meu desejo de convivência é antigo, muito antigo, vem lá de nossa ancestralidade social onde um pequeno grupo se punha diante de uma fogueira, com uma luz incerta a fazer sombras nas paredes das cavernas e o calor sendo suficiente para aquecer os homens e para contextualizar a ficção das suas aventuras ali narradas...Bons tempos de convivência .
Hoje, em pleno século XXI, em busca de paz interior e conforto entre amigos sigo a solidão de meu dia a dia. Sempre rodeada de pessoas, mas muito sozinha. E eis que na faina diária, sol a pino, calor abrasante, céu azul (azul até demais), escancara-se o dia e a imagem que descreverei a seguir. Ela abre-se diante dos meus olhos sem nem mesmo me pedir licença e com ela, em anexo, a própria fragilidade humana, explícita e surpreendente, deixando estupefatos os menos avisados, os distraídos...
E foi assim que o acaso me pregou uma peça, uma cena patética, nos primeiros momentos e, em seguida, digna de compaixão, pedindo cumplicidade a nós mulheres.
Vamos ao fato, meio-dia e quinze minutos, céu azul, azul até demais, saio do trabalho e, como nos outros dias, tenho trinta minutos para almoçar e me dirigir ao segundo turno de minha jornada diária. O tempo é curto, dá só para uma retomada de fôlego. Filhos a bordo, reivindicando coisas banais, inclusive o som do carro, e lá vamos nós no heavy metal e mais o calor, que é escaldante. Ligo o ar condicionado e fecho os vidros. Um escudo invisível, inclusive para os ouvidos. Desligo-me de tudo, ou quase tudo, ligo o piloto automático, que olha o trânsito e confere o trajeto de sete minutos até minha casa, mas é justamente esse mecanismo (não tão infalível assim) que me avisa: “Alerta, obstáculo na pista”... Antes mesmo de conferir, diminuo a velocidade, firmo o olhar... De costas o vulto é de uma mulher, no meio do asfalto, correndo à frente do carro. Olho no retrovisor, ninguém atrás. À esquerda, o mesmo prédio abandonado, as janelas sem os vidros são como órbitas que há muito perderam a vida e por isso estão cegas a qualquer movimentação que não seja a de sempre. À direita, árvores antigas, e egoístas, impassíveis diante do asfalto. Mas, à frente, havia uma mulher, uma mulher no meio do caminho... Maratonista? Talvez...
Adivinhando as minhas perguntas-pensamentos, ela diminui a marcha, olha para trás, nossos olhares se encontram, ela hesita. Eu paro o carro no meio da rua, ela, inesperadamente, de frente para o carro, diante dos meus olhos e dos meus filhos, mudos diante da cena. Braços abertos em frente ao vidro panorâmico do carro e ela me pede em desespero: “ Me mata, moça, me mata!?” Com os olhos pregados nela respondo sem pensar: “Minha senhora, o que é isso!?” A voz sai do fundo, quase como um pensamento que escapa sem permissão. Ela continua: “Eu quero morrer!” Sem titubear argumento: “Mas minha senhora, sua vida é tão preciosa! Por que morrer?” Ela conclui:”Meu marido me traiu!!!”
Num misto de espanto pela ingenuidade e pureza daquela declaração, admirando a honestidade e, por que não dizer coragem, assumida diante da confirmação do adultério (seria covardia?), retomo a direção do carro, ela por sua vez dirige-se para a lateral da rua. Já posso olhá-la de lado, então tirei o pé do freio e lentamente o carro seguiu, pela força da gravidade, morro abaixo. Meu desejo íntimo era de estacionar, descer do carro, tomar-lhe as mãos, sentar-me com ela ali mesmo na calçada e ouvi-la, depois oferecer-lhe uma carona, talvez, dizendo: “ Minha senhora, apesar dos traídos(as)e das traições, a vida continua”
Fui despertada pela voz de meus filhos; “Mãe, olha a hora!” Olhei o painel do carro: 12h30min. Voltei-me para a mulher, ela já desviara o seu olhar. Acho que fiquei parada ali por segundos. Ela parecia determinada a fazer com que alguém assumisse com ela o ônus de sua morte e seguia correndo em direção aos carros que se desviavam dela. Tirei o pé do freio e acelerei, não muito e quase a alcancei novamente. Ficando próximo o bastante, pus a cabeça para fora do carro e gritei: “Minha senhora, se a senhora morrer, ele fica com a outra, viu!? ”Ela hesitou, voltou-se para mim, olhar perdido, pareceu querer voltar, mas agora fui eu que aumentei a marcha, pois tinha um carro atrás, uma moto ao lado e todos olhavam para mim sem entender nada . À frente o semáforo avermelhou e eu tive que parar. Pelo retrovisor pude vê-la no meio do cruzamento, estava determinada a encontrar alguém que lhe tirasse a vida.
Sobre a autora:
Anna Teresa Rojas Molina Assumpção Gouvêa - Professora da Rede Pública e Privada, graduada em Letras e pós-graduada pela Faculdade de Educação- Unicamp - Mestrado.
"Aos 12 anos tinha o grande sonho de ser escritora de livros infantis. Hoje, me contentaria em escrever crônicas."